Início dos anos 60… A pacata Tremembé acordava todos os dias com o badalar nostálgico dos sinos da matriz, anunciando solenemente as horas e os quartos de hora.
Abençoada pelo Senhor Bom Jesus, a igreja (basílica entraria para sempre na história de minha vida, por motivos diversos. Desde a tenra infância, guiado pelas mãos seguras de minha saudosa mãe Dona Cecília, eu (assim como a grande maioria das crianças da cidade) fui introduzido na religião católica, e consequente, a todas as suas atividades eclesiásticas, litúrgicas, etc.
Eram tempos diferentes aqueles, em que ninguém ousava a desobedecer ou contrariar os pais, sob pena de arcar com as possíveis consequências, que iam de um simples puxão de orelhas, até um banho forçado de salmoura na região glútea.
Fui Cruzado Eucarístico de terninho azul marinho (de calças curtas e meião 3/4), indumentária obrigatória nas missas de domingo, aos que engajavam no tal grupo religioso. Não satisfeita em me alistar na famosa e honrada Cruzada, minha mãe, talvez no afã de me tornar um candidato a santo, me obrigou a fazer alistamento também no corpo de Coroinhas da Igreja.
Eis me então, dali para diante, sobrecarregado de atividades religiosas, as quais, me afastavam das estrepolias e das deliciosas vadiagens infanto/juvenis, tão comuns naqueles dias.Um pequeno grupo de aspirantes a coroinha (até hoje não sei qual a origem e o significado do tal título) foi confiado a um gentil e bondoso beato, que se chamava SEU OVÍDIO, cujos ensinamentos de “latim”, nos habilitaria ao cargo. Saber rezar acompanhamentos litúrgicos em latim, era condição “sine qua non” para o exercicio das funções afins.
Assim, fui alistado como coroinha do Padre Manoel de Azeredo Brito, o qual, estava “debutando” nas funções paroquiais de Tremembé. Foi encomendada em Taubaté, para mim, uma solene batina preta (não sei dizer qual era o tecido) muito vistosa, repleta de botões pretos, do pescoço até o peito dos pés, além de uma angelical sobrepelis branca, rendada, cujo comprimento tangenciava o final do fêmur. Um par de reluzentes sapatos e meias pretas completavam aquela espécie de farda de gala religiosa.
O rol de atividades de um coroinha não era tão simples, como se imaginava, tinhamos que ajudar nas missas, nas longas procissões, nas rezas vespertinas de então, nos casamentos, batizados, extrema unção, crismas, festas de largo, quermesses, enfeites de rua no “Corpus Cristie” e, por aí vai.
Havia uma humilde remuneração para os coroinhas, paga, conforme a atividade exercida. Um pequenininho agrado para quem acumulava tantas obrigações. O padre Brito era conhecido por suas virtudes religiosas, mas também pelo seu famoso temperamento intempestivo, que explodia em interpéries verborrágicas tantas.
Eu conheci bem de perto suas zangas, em diversas ocasiões…a maior delas, para com minha pessoa ocorreu no seguinte fato: Eu estava ajudando a reza diária das 18 horas e na declaração do “Magnificat” competia ao coroinha produzir bastante incenso, com um aparelho chamado turíbulo, que continha um recipiente cheio de brasas, as quais, se avivavam mediante balanço, movido angularmente pelas mãos do coroinha.
Eu estava balançando o turíbulo, monotonamente, ouvindo a recitação da homilia a Nossa Senhora, em latim…. Então foi me dando um sono incontrolável, e minhas mãos foram descendo, descendo, enquanto eu balançava lentamente o tal fazedor de incenso.
Haviam degraus no acesso ao altar, cujo piso era coberto por um enorme tapete vermelho, tipo vaticano, sei lá.
Em dado momento o turíbulo abaixou demais e bateu violentamente no degrau do altar, espalhando um mundaréu de brasas sobre o lindo tapete. Naquele tempo, os padres rezavam os ofícios religiosos de costas para os fiéis e, por causa desta posição, o padre Brito demorou alguns segundo até entender o que havia ocorrido.
Por fim, o padre virou pra trás, me viu chutando as brasas para fora do tapete, o qual já estava furado em vários lugares. Foi um Deus nos acuda. Vou poupar os queridos leitores e leitoras, dos impropérios declamados pelo padre contra este pobre coroinha, que se seguiram naquele sagrado local de orações.
Carrego ainda na memória e nas retinas, a estupefacão geral e os risos dos fiéis diante daquelas cenas que interromperam a reza naquele dia.
Graças a este episódio minha carreira eclesiástica foi relâmpago.
Tremembé pode ter perdido, naquela tarde bucólica, um possível papa (ou não).
Escrito por Luiz Henrique R. Amaral